Folha de S. Paulo: Doulas da morte dão apoio emocional no fim da vida, no enterro e também no luto

A doula da morte e economista Elca Rubinstein, 73 anos - Karime Xavier/Folhapress

“Perdi uma amiga querida que tinha 45 anos e três filhos. Passei praticamente todos os dias ao lado dela, desde o diagnóstico até a sua morte, e descobri que me sentia confortável em situações delicadas como essa, em conversar com as pessoas.”

Foi essa experiência pessoal que transformou a americana Patty Burgess em uma doula da morte. A profissão, que está se espalhando pelos Estados Unidos e pela Europa e começa a chegar no Brasil, consiste em acompanhar pacientes com pouco tempo de vida, dando a eles apoio emocional e espiritual, mas especialmente ajudando-os a resolver pendências práticas e a tomar decisões a respeito do momento da morte.

Da mesma forma, Tom Almeida, 48 anos, diz que virou “ativista da boa morte” após acompanhar de perto a morte de um primo e do próprio pai. Empreendedor social, ele promove cursos e eventos voltados a cuidados paliativos e à discussão da morte, como o Cineclube da Morte, projeto que associa a exibição de um filme a um debate sobre o assunto e acontece mensalmente no Caixa Belas Artes.

“Aqui ainda é tudo muito novo. Mas estamos com uma população que está envelhecendo, que está tendo menos filhos e que provavelmente não terá estrutura para a hora de morrer. Então, a doula pode ocupar esse espaço no final de vida. Vejo esse trabalho como uma oportunidade social de impacto econômico.”

Assim, se há as doulas que auxiliam no nascimento, há as que cuidam do fim da vida também.

“Como doula da morte, ou doula do fim da vida, parte do meu trabalho é oferecer suporte físico, prático, emocional e espiritual para aqueles que estão morrendo e as pessoas próximas a eles. Isso pode incluir desde sentar ao lado da cama de alguém que está de fato morrendo, ajudar com o planejamento de seus últimos desejos ou fazer uma ligação para algum familiar”, conta Burgess.

Em casos de desastres e mortes repentinas, como no caso da tragédia de Brumadinho (MG), o trabalho da doula poderia, além de consolar familiares, ajudá-los a entender quais rituais podem ser feitos na cerimônia de despedida para apaziguar a dor e trazer mais conforto, segundo Almeida. ​

As doulas não precisam ser profissionais de saúde. Elas recebem formação para conseguir lidar com a morte de forma natural e fazer com que pessoas diagnosticadas com doenças avançadas em progressão (o termo doença terminal não tem sido mais utilizado pelos médicos) tenham uma boa morte, como costumam dizer.

O conceito da boa morte tem a ver com respeitar os valores, as crenças e os desejos de quem está morrendo, de forma que nesse momento, em vez de medo, paciente e familiares encontrem serenidade e acolhimento.

Vivências pessoais de proximidade com a morte normalmente motivam quem decide se envolver com o assunto. “Essa é a beleza desse trabalho. Em geral, ou a pessoa teve uma boa experiência e quer mostrar aos outros como a morte pode ser poderosa, cheia de significado e de conexão ou então passou por algo terrível, sabe que pode ser diferente e, a partir daí, o trabalho começa”, conta Burgess.

No Brasil, o trabalho de acolhimento a pacientes com doenças graves é feito pelas equipes de cuidados paliativos de hospitais, que contam com médicos, enfermeiros, psicólogos e fisioterapeutas, entre outros profissionais da saúde, que buscam humanizar esse momento e transformá-lo em uma experiência mais natural e serena, evitar internações e terapias desnecessárias e controlar a dor com medicamentos.

No entanto, menos de 10% dos hospitais brasileiros têm equipes de cuidados paliativos, segundo levantamento da Academia Nacional de Cuidados Paliativos.

O trabalho das doulas começa a aparecer aqui por parte de pessoas mobilizadas para acabar com o tabu que ainda é falar sobre a morte.

Elca Rubinstein, 73 anos, passou a se dedicar ao assunto com sua aposentadoria e um novo olhar sobre o envelhecimento.

“Trabalhava no Banco Mundial, em Washington D.C., e, quando me aposentei, voltei para o Brasil e disse: ‘Chega! Agora começa meu terceiro ato e vou vivê-lo de forma diferente’. Resolvi, então, aos 60 anos, me preparar para o meu envelhecimento. Trabalhei minha espiritualidade, me apaixonei pela ideia do envelhecimento inteligente e, como parte dessa aceitação, parei de pintar o cabelo”, diz.

A economista também se envolveu em estudos sobre a morte, fez cursos e queria aprender a lidar bem com a finitude da vida. “Descobri que esse momento pode ser lindo e precioso. Minha ideia de envelhecer e morrer foi assumindo ares menos trágicos à medida que fui ressignificando essas coisas.”

Assim, Rubinstein decidiu implementar no Brasil o projeto Death Café Sampa, um encontro para falar sobre morte. Os estudos sobre o tema levaram a economista ao curso de doula da morte, nos EUA —o Brasil ainda não tem formação voltada a essa profissão. “Foi maravilhoso aprender a auxiliar, saber o que conversar quando a pessoa está se aproximando da morte, o que você tem a oferecer para ajudá-la a enfrentar esse final.”

Quando voltou ao Brasil, no entanto, Rubinsten pensou em trabalhar como voluntária, mas não conseguiu espaço em nenhum hospital com que fez contato. O trabalho das doulas ainda é pouco conhecido e discutir questões relacionadas à morte não faz parte da cultura brasileira. Os próprios cuidados paliativos ainda são vistos com desconfiança por pacientes e familiares.

A economista, porém, quer seguir colocando o assunto em debate. Nos EUA, soube de uma instituição chamada NODA (sigla de No One Dies Alone, ou ninguém morre sozinho), que trabalha com voluntários —muitos têm formação de doulas da morte, mas não é necessário— e que tem como objetivo não deixar que as pessoas morram sem acolhimento. Podem sentar-se ao seu lado e ler uma poesia, cantar uma música, ou simplesmente segurar sua mão. Ela espera conseguir implementar o programa no Brasil.

A geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, que tem especialização em cuidados paliativos e escreveu o livro “A Morte É um Dia que Vale a Pena Viver”, diz que não acredita que o trabalho de doulas possa se estabelecer a curto prazo no Brasil. “Não temos coragem, condição nem capacidade de estar ao lado dos nosso próprios familiares nesse momento, então acho difícil que alguém pague por isso”, diz.

No entanto, ela acredita que a formação de doula seria valiosa para os estudantes da área da saúde e para qualquer um que quisesse aprender como é estar ao lado de alguém que está morrendo.

Daniela Achette, psicóloga da equipe de cuidados paliativos do Hospital Sírio-Libanês, lembra que o amparo no fim de vida alivia o sofrimento de todos.

“E o trabalho das doulas tem a ver com essa permanência ao lado do paciente e da família, dando suporte nesse processo de luto que já se abriu. Tem algum ritual que possa favorecer essa família? Tem alguma despedida que faça sentido? Quais são as necessidades espirituais? Acaba sendo um espaço de construção de significado, de elaboração e até de planejamento para quem fica e para quem foi.”

Fonte: Jornal Folha de S. Paulo. Reportagem de Débora Miranda.

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