Como envelhecer

Reportagem publicada na Revista Vida Simples

 

Tio Josias ou Jó, como gostávamos de chamá-lo, estava com 82 anos. Era o irmão mais velho da minha mãe. Lembro dele como um homem grande, pouco afeito a palavras gentis. Ria pouco, brincava pouco, abraçava pouco. Era parecido com a minha avó Esther, na aparência e no afeto medido a conta-gotas. Eu não via tio Jó havia muitos anos. Um dia, minha mãe me ligou e deu a notícia: “Meu irmão Josias morreu na quinta” – era um domingo. Eu não sabia ainda o que falar, quando ela emendou. “Falei com ele na segunda, se despediu dizendo que eu ficasse bem. Ele só estava esperando seu dia de partir. Morava sozinho, porque não queria dar trabalho para os filhos, e passava todo o tempo no apartamento, só esperando… Deixou até mesmo o próprio enterro pago”, contou. “Também, já estava com 82 anos”, finalizou ela, e entramos em outro assunto. Estar com 82 anos é mesmo pré-requisito para partir? Se tem algo que me dá um baita receio é ir embora com a sensação de que a festa ainda não acabou. Essa, aliás, é uma reação que adoro ver em meus filhos: eles sempre querem aproveitar cada instante (de uma festa, de um passeio) até a última gota. É intenso, o tempo todo. Faz sentido, porque, pra gente, esse é um comportamento normal de quando se é criança. Mas por que a vida não pode seguir assim, intensa, apaixonante, divertida em todas as idades? Não quero esperar o tempo passar para ver a festa, chamada vida, terminar ou, pior, sair antes mesmo de ela se dar por encerrada. Fazer isso pode ter um preço alto: o de não viver. Isso me recorda a poetisa Cora Coralina, que teve seu primeiro livro publicado com quase 76 anos – ela morreu com 96 –, e de uma frase que li e cuja autoria é remetida a  Como ela: “O que vale na vida não é o ponto de partida, e sim a caminhada”. Cora Coralina, aliás, é só um exemplo entre tantos outros escritores que se dedicaram às palavras depois de… velhos, quando, normalmente ou socialmente, se espera que você se acomode em uma cadeira e conte os dias sentado numa poltrona. Mas como envelhecer com plenitude, aproveitando o melhor da caminhada, como diria Cora Coralina? A socióloga, jornalista e escritora inglesa Anne Karpf é autora do ótimo Como Envelhecer (Objetiva), que faz parte de uma coleção lançada pela The School of Life, e dá uma pista: para envelhecer bem é necessário falar sobre aquilo que mais nos apavora, enfrentar medos, barreiras dentro e fora da gente. E envelhecer e morrer (os dois juntos, nessa sequência) está entre os temas que mais nos amedrontam. No entanto, por mais irônico que pareça, se existe algo certo é que vamos envelhecer e morrer. É inevitável. O problema, segundo Anne, é que gastamos energia demais na luta contra a passagem do tempo, e que poderíamos dedicá-la a viver de uma forma mais plena. “Para um grande número de pessoas, envelhecer significa empobrecer, o que, por sua vez, impede os mais velhos de viver os prazeres e a plenitude da vida”, escreve Karpf. Então, nesta reportagem, não vamos falar sobre como barrar esses processos (não dá). Nem como chegar aos 70 como se tivesse 50. Ou dos métodos para que a passagem do tempo não seja avassaladora para o seu corpo – isso você encontra nas boas reportagens de saúde. O caminho pelo qual optamos aqui é como ser você – ou encontrar a sua melhor versão – em cada fase da vida. E, para isso, peço licença para usar um dos mais belos exemplos que li no livro de Anne Karpf: “O processo de envelhecimento é tão caricaturado e repudiado que as pessoas mais velhas costumam dizer, surpresas: ‘Não me sinto velha, ainda me sinto  como se tivesse 18 por dentro’. Elas ainda têm 18 anos por dentro – e 8, e 28, 38, 48 e 58: todas as idades anteriores não são estripadas pela idade, e sim cobertas umas pelas outras, como anéis no tronco de uma árvore”. Sim, somos como um tronco de uma árvore ou como um bolo em camadas (imagem, aliás, usada lindamente para ilustrar estas páginas), e todas as idades nos pertencem, fazem parte de nós, uma a uma. Mas por que, afinal, temos tanto receio de ver a pele ficar flácida e os cabelos, brancos? Um desses fatores é cultural. E perpetuamos isso todos os dias. Quando se fala em alguém com 70, 80 anos, em geral usamos ícones relacionados a enfermidades: pessoas encurvadas, com olhar triste, solitárias, usando bengala. “As pessoas mais velhas costumam ser identificadas não pelas suas capacidades, mas pelas deficiências”, explica Karpf. Para não ajudar, os artigos de revistas falam sobre “como ficar fabulosa aos 50”. São textos que não nos desafiam, mas tentam apenas nos ensinar como maquiar ou encobrir os sinais da velhice. A realidade é que a quantidade de pessoas com 80 ou mais só tende a aumentar – estamos vivendo mais. “Esses homens e mulheres passam a ser vistos como um fardo. E, pior, as pessoas não se enxergam como idosos, parece um futuro que não pertence a elas”, continua Karpf. Como vamos lidar bem com o próprio envelhecimento se olhamos para isso com medo e sem admiração por quem já chegou a essa fase da vida? “O envelhecer é um processo que começa no nascimento, nunca cessa e sempre tem o potencial de enriquecer nossa vida”, pontua Karpf. Existem algumas maneiras de lidar com isso. Há projetos, espalhados pelo mundo, que mostram que a idade cronológica, muitas vezes, realmente não importa. Um deles é a Generations United, uma organização americana que estimula a colaboração entre gerações. A convivência pode ser um caminho lindo para reduzir as distâncias. Na prática, eles colocam idosos para conversar com jovens e crianças e, juntos, debaterem soluções para a comunidade. Magic Me, o mais importante organizador britânico de projetos internacionais, reúne meninos e meninas com mais de 8 anos com gente com mais de 60 para realizarem atividades criativas, como música, teatro, fotografia. A ideia é aproximar e fazer com que as pessoas percebam que têm muito a aprender e a ensinar o tempo todo.

O tempo não para 
Até o momento a ciência ainda não descobriu como evitar que o corpo envelheça ou, se me permite, que o ciclo de vida se complete, num processo de amadurecimento que pode nos transformar em frutas maduras, tenras e doces ou em algo amargo e difícil de digerir. Todos temos esse poder de escolha. O que torna isso difícil é o fato de nossa sociedade supervalorizar a juventude – o que cotuma ser mais perverso para quem vive em torno da aparência. Só que envelhecer não é só um processo fisiológico, é também psicológico, intelectual e cultural. Há anos, a antropóloga Mirian Goldenberg se dedica a entender não apenas a velhice mas a liberdade de poder ser aquilo que se deseja em qualquer idade. Seu último livro, Velho É Lindo! (Civilização Brasileira), traz na capa um casal de idosos pelado, de braços para cima (numa expressão de contentamento). Sim, é uma provocação. “De biquíni ou de maiô, minissaia ou calça jeans, o que interessa é que somos cada vez mais livres para reinventar a nossa ‘bela velhice’. E para mostrar, aos velhos de hoje e aos de amanhã, que ‘velho está na moda’; mais ainda, que ‘velho é lindo!’”, escreve Goldenberg para, em seguida, citar a passagem de uma entrevista com a atriz Marieta Severo. “Vejo tanta gente preocupada em colocar botox na testa. Eu queria poder colocar botox no cérebro. Tenho verdadeiro pavor de perder a capacidade mental, é isso o que mais me assusta quando penso na velhice. Quero ser uma atriz velha com capacidade de decorar um texto, quero ser lúdica na vida e na família.” Existe um blog britânico muito bacana, chamado Look at Me! Images of Women and Ageing (Olhe para Mim! Imagens de Mulheres e do Envelhecer, em tradução livre). Entre outras coisas, ele contesta a imagem de mulheres mais velhas estereotipadas. Projetos assim ajudam a não propagar a ideia de que envelhecer é algo vergonhoso e que as  paixões não diminuem com o tempo – idade nenhuma tira isso da gente. O tempo, na verdade, só ajuda a fortalecer a própria voz.

Nunca é tarde
A médica Ana Claudia Quintana Arantes é geriatra e especialista em cuidados paliativos, uma área da medicina que acompanha os últimos dias de uma pessoa. No dia a dia de trabalho, ela convive com pessoas mais velhas porque tem a ver com sua especialidade médica. Mas, na rotina fora do consultório, ela também tem entre as melhores amigas mulheres de 70, 80 anos. “Há pessoas que não têm idade. Elas não se comportam conforme o tempo cronológico. Mas não porque não se aceitam, mas porque estão acima da cronologia. É espiritual e está além do tempo. São pessoas que se relacionam com crianças, jovens, adultos e mantêm com todos um nível de sintonia igual. Elas entram em contato com a essência delas mesmas e com isso tiram de nós o melhor que podemos dar.” Só que nem todo mundo consegue enxergar a vida dessa perspectiva e, com o passar dos anos, vai se transformando em fruta azeda. “Quem envelhece mal só encontra o que há de ruim nesse processo. Essas pessoas, em geral, se distraem para evitar o contato com o envelhecimento: não querem ver rugas na cara, gordurinha na barriga, dores nas costas. Elas não querem se encontrar com a realidade cronológica”, acredita Ana. Mas por quê? “Porque não tiveram a oportunidade de encontrar com a realidade existencial que a cronologia deu. O tempo dá a possibilidade de construir, reconstruir, de se descobrir, descobrir o outro, rever posturas. E  então você não consegue ficar frente a frente com o tempo, você quer ficar naquele tempo em que achava que tinha chance. Você tem 30 e quer ter cara de 18. E o que as pessoas não entendem é que não é o fato de você parecer menos que vai fazer viver mais”, acrescenta a médica que acaba de lançar uma obra essencial para o bem-viver, A Morte É um Dia Que Vale a Pena Viver (Leya).

Deixar ir
Entender a passagem do tempo também tem relação com o desapego. Para Anne Karpf as pessoas que envelhecem melhor são aquelas que carregam menos coisas ao longo da jornada. Isso significa ter a capacidade de se livrar de ideias, conceitos, verdades. “É necessário certa flexibilidade de espírito. Só que desapegar-se de velhas narrativas pode ser extremamente doloroso; envolve luto pelo que nunca aconteceu assim como pelo que aconteceu, e admitir fracassos, pontos de vista errados. Exige que reconheçamos que não controlamos o desenrolar da vida”, diz. Não é só isso, claro. Conforme os anos se adentram, as perdas são inevitáveis. Amigos, pessoas queridas. Daí um ponto importante: saber se reinventar, descobrir delicadezas na trajetória mesmo diante das adversidades e manter o olhar curioso. “Vai ser bem legal você experimentar.” Foi com essa frase e desse jeitinho que a médica Ana Claudia conseguiu convencer um paciente, um senhor de 84 anos, a fazer terapia. “Ele dizia que não tinha tempo para isso, e eu o convenci que esse, então, era o melhor momento. Se o tempo dele estava acabando, por que não conhecer algo novo? Ele foi. Que alma incrível é essa que se disponibiliza a aprender algo novo? Isso rejuvenesce”, acredita. Tem gente que busca isso se reinventando sempre e construindo muitas vidas dentro da mesma vida. Isso depende muito de nós mesmos, claro. E também de disposição e vontade. Mas, principalmente, das relações que estabelecemos por aí. São elas que vão nos guiar sempre. Uma pesquisa feita pela farmacêutica Abbot perguntou a mais de 5 milhões de homens e mulheres, ao redor do mundo, o que era para cada um deles viver ao máximo. Bom, para 94% envelhecer de modo saudável é muito importante na jornada. E como conseguir isso? Conforme me explicou o diretor de marketing corporativo da empresa, Marcos Leal, a chave, para boa parte das pessoas, está nas relações, como o convívio com a família (60% das pessoas responderam isso) e nas relações afetivas (57%). E precisamos encontrar maneiras diversas de fazer isso. No livro O Clube do Livro do Fim da Vida (Objetiva), o jornalista americano Will Schwalbe conta sobre os últimos meses da mãe. Ela estava com  câncer e fazendo quimioterapia. Havia sido uma mulher intensa, viajou, criou bibliotecas em lugares improváveis, e esperar a morte chegar não combinava com ela. Então ela e Will criam um clube do livro de duas pessoas e, ao longo da quimio, comentavam sobre as obras e, algumas vezes, sobre a vida. Dessa forma, ele e a mãe encontraram a maneira de ela se despedir da vida de um jeito não muito diferente de quem foi durante todo o caminho: intensa, cheia de paixões e com vontade de aprender sempre. Envelhecer não se trata, de novo, de colecionar rugas, mas experiências, o que é bem bacana.

Quando o caminho fica difícil 
Um envelhecer cheio de significado e aprendizados é incrível, mas o que fazer quando uma doença incapacitante bate à porta (todos estamos sujeitos a isso). Talvez a velhice agora não tenha tanta beleza. Ledo engano. Novamente, tudo é uma questão de olhar. O médico e filósofo Antônio Pessanha Henriques Junior administra um grupo no Facebook chamado Educação para a Morte, e conversei com ele sobre o que fazer quando, apesar do cultivo de um bom envelhecimento, você dá de cara com uma doença degenerativa ou uma demência. Pessanha me respondeu com uma reflexão: “O bem viver e o bem envelhecer passam, obrigatoriamente, em buscar relações honestas, e isso não é um quesito quantitativo, mas qualitativo. Se tudo correr bem, vamos morrer no final. Muitas doenças em nossa trajetória podem ser previsíveis e evitáveis, outras não. Aceitá-las pode ser um grande exercício e, se você construir boas relações, seremos pessoas boas para cuidar”. Viu? Olha as relações novamente aí.  O estudante de psicologia de São Paulo Bruno Camargo costuma dizer que acompanha o envelhecer dos pais desde sempre – quando ele nasceu, a mãe já tinha mais de 40. Hoje, ela tem 68 anos e a memória falha todos os dias. Dona Isa tem Alzheimer. Para falar sobre o dia a dia da mãe e para preservar a memória de quem ela foi por boa parte da vida, Bruno criou uma página no Facebook chamada Dona Isa, Histórias para Compartilhar. “Com a doença da minha mãe aprendi que não existem só os momentos tristes, existem, sim, muitos momentos felizes de recordação, conquista e prazer em descobrir algo novo. Tudo vai depender de como olhamos e vivemos esses momentos. Hoje vejo que cuidar, fazer o dia dela ser um pouco melhor e menos confuso, e compartilhar toda essa experiência com os outros me ajuda a colocar a cabeça no travesseiro, à noite, e ter a certeza que, de alguma forma, tenho ajudado muita gente a ter um pouco mais de luz, esperança e amor.” É isso, Bruno, envelhecer é também – e finalmente – uma lição de amor com o outro e com a gente mesmo. O tempo, afinal, não rouba a nossa essência, aquilo que fomos, as pessoas com quem nos relacionamos, o que construímos, destruímos, os adeuses que tivemos de dar, as lágrimas que deixamos cair (de alegria ou tristeza), os filhos que tivemos – ou não – os casamentos, ilusões, sonhos. Tudo isso faz parte de cada um de nós, da nossa história, do nosso ciclo de vida. Permanecemos nós mesmos, só que mais velhos. Em vez de brigar, esconder a qualquer preço as marcas do tempo, abrace-as, aceite, comemore. Essa é a beleza maior de viver, aproveitando a festa até o último minuto.

2 respostas

  1. Parabéns! Lição a ser feita e praticada todos os dias.Estou encantada com tanta informação saudável!!!!! Apesar de já ter feito Setenta Anos, vivo feliz e gozo de boa saúde.

  2. Maravilhoso texto. Obrigada. Eu vim aqui no Google em busca de um artigo sobre a velhice pq no W.app da minha família ( somos 10 e o mais novo com 60 e a mais velha com 82 e eu 64) tivemos uma discussão em torno de um vídeo, que uma das irmãs colocou, de uma médica falando da velhice Dra. Roberta França que foi muito desagradável na opinião da maioria, na minha inclusive, achei que apesar dela falar muita coisa correta ela não sobe se comunicar, o contrário do que encontrei neste artigo.

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