Zero Hora: “É preciso ter respeito pela grandeza do ser humano que enfrenta sua morte”, diz médica

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A convidada do Encontro de Enfermagem que a Unimed Nordeste – RS realiza neste sábado (29) — no formato online e aberto ao público — é defensora de um olhar mais atento e gentil aos pacientes terminais. Referência em medicina paliatiava e autora dos livros A morte é um dia que vale a pena viver (2017) e Histórias lindas de morrer (2020), a médica Ana Claudia Quintana Arantes compartilhou com o Pioneiro algumas ideias que envolvem a finitude humana.

Pioneiro: Como você se encontrou com a medicina paliativa e de que forma decidiu seguir nesta área?
Ana Claudia:
Não entendia por que os pacientes eram abandonados exatamente quando a doença deles não tinha opção de tratamento e o sofrimento era absurdo. Busquei conhecimento para cuidar de pessoas no final da vida para que pudesse saber o que fazer quando todo mundo dizia que não tinha nada para fazer. Foi um movimento subversivo, quase revolucionário. E encontrei esse conhecimento nos cuidados paliativos, e na psicologia, através do estudo do processo de luto. O cuidado paliativo é o cuidado de proteção em relação ao sofrimento que a doença traz, que o adoecimento proporciona. A doença quando encontra um ser humano forma uma melodia única que é o sofrimento. Cada um tem seu modo de sofrer. No cuidado paliativo não estamos lutando contra a doença, estamos favorecendo a vida, na felicidade possível, na realidade possível. A doença pode seguir seu curso, e a pessoa tem permissão para a morte natural. Entre adoecer e morrer há muito o que fazer pelo bem de quem vive este processo tão delicado e sagrado em sua vida.

Qual foi o maior aprendizado que o trabalho com pacientes terminais te trouxe?
Seja como espectadores, seja como protagonistas, a morte é um espaço onde as palavras não chegam. Tem momentos que vivi acompanhando pacientes na sua fronteira da vida que jamais poderiam ser traduzidos fielmente em palavras. O indizível é a melhor expressão da experiência de vivenciar a morte. Na vida humana, talvez somente a experiência de nascer possa ser tão intensa quanto o processo de morte. E talvez seja por isso mesmo que tememos tanto esse tempo. O mais inquietante é que todos nós passaremos por ela ou acompanharemos a morte de quem amamos.

Todos serão absolutamente transparentes diante de uma pessoa perto da morte. É impressionante como as pessoas adquirem uma verdadeira “antena” captadora de verdade quando se encontram com a morte e o sofrimento da finitude. Eu sempre digo que parecem oráculos. Sabem tudo o que realmente importa nessa vida com uma lucidez incrível. As pessoas precisam saber que não há fracasso diante das doenças terminais. É preciso ter respeito pela grandeza do ser humano que enfrenta sua morte. O verdadeiro herói não é aquele que quer fugir na hora do encontro com sua morte, mas sim aquele que a reconhece como sua maior sabedoria. Que histórias de últimos dias contarão a nosso respeito? Do que lembraremos dos últimos momentos de quem amamos tanto? O que fazemos com o tempo que temos hoje antes que a morte chegue?

Escolhi essa área da medicina por valorizar meu tempo e por isso me sinto capaz de valorizar o tempo do outro. Eu sei o meu melhor motivo de existir, de viver. Quem está morrendo não tem tempo para desperdiçar com quem não sabe o valor que o tempo tem e eu me dedico muito ensinar e a respeitar isso.

Para você, o que significa cuidar de um paciente?
Quando a gente fala que o profissional de saúde é treinado para a vida, na verdade ele é treinado para liquidar doenças. Não se importa com a vida do paciente, mas sim, com a doença. Eu me dei conta de que, quando você trata a doença obstinadamente, você acaba com a vida da pessoa, com a vida em todas as suas dimensões, não só biológica, e priva essa pessoa de estar com a família dela, de entrar em contato com as coisas que ela dá valor, da possibilidade de escolher o que fazer com o tempo dela. Você pensa que a única escolha que ela tem é tratar a doença, mas muitas vezes isso não faz sentido. Se desperdiça tempo que poderia ser utilizado em uma percepção de vida muito melhor do que dentro de um hospital. Então, na medicina a gente não tem espaço para discutir o que realmente faz sentido para curar ou controlar uma doença.

Entender que a medicina tem limite pra mim nunca foi difícil. Já estava em mim. A questão era “por que a medicina se limita a cuidar do sofrimento do paciente? Por que ela só aceita a ação ilimitada em cima da doença? Por que ela não pode cuidar da pessoa de uma maneira completa? Se ocupar de servir aquele paciente para a vida dele, não para a doença dele?”. Na residência de Geriatria, eu procurava os pacientes que estavam no final da vida e iam morrer no corredor e os levava para os meus leitos, onde eu conduzia o processo do cuidado amplificado. Era o cuidado paliativo na prática, com equipe de enfermagem, psicologia, serviço social, fisioterapia, nutrição, farmácia, terapia ocupacional, odontologia, todos trabalhando com esse olhar para a qualidade de vida do paciente. Surpreendentemente, as pessoas ficavam bem e até tinham alta. Objetivamente, cuidar das pessoas faz com que elas vivam mais. Elas vivem mais e melhor. Quem não quer isso?

Na maioria das vezes, temos algo errado acontecendo conosco quando procuramos um médico. E a nossa expectativa é que a medicina saiba como consertar o que não funciona. Não importa se é um profissional de saúde, um cuidador profissional ou cuidador familiar. Para ajudar de verdade alguém que precisa ser cuidado, é necessário saber estar presente. Vou fazer tudo o que sei para ajudar a controlar sua pressão, seu colesterol, seu diabetes, sua dor, seu câncer. Posso te ajudar a entender a vida, a morte, seu medo, a doença e o sofrimento. Mas o que eu quero de verdade é que os profissionais de saúde, os cuidadores todos deste mundo entendam: o nosso maior objetivo é abrir espaço no tempo daqueles que cuidamos para que a felicidade possa vir fazer morada na vida deles.

Eu trabalho cuidando de pessoas que vivem o momento presente pelo estado da dor. Pela dor física, pela dor emocional, pela dor existencial, pela dor espiritual. Elas estão presentes nas vidas delas, mas em um momento muito difícil. Mas ainda assim, a felicidade se permite chegar em quem está disposto a recebe-la. Em qualquer tempo, em qualquer lugar, em qualquer realidade. Então, se você cuida de alguém, experimenta no próximo encontro pensar algo assim na hora da despedida: “Até que eu te veja de novo, desejo que você seja muito feliz.”

A condição de adoecimento que vai nos levar a morte, é uma condição que que implica em sofrimento em todas as direções. Quando você oferta cuidados paliativos para as pessoas você considera a esperança de redução deste sofrimento em algo muito mais objetivo e real. Então você consegue aliviar esse sofrimento físico, emocional, social, familiar, espiritual. No cuidado paliativo não estamos lutando contra a doença, estamos favorecendo a vida, dentro da realidade possível, da felicidade possível. A doença pode seguir seu curso e a pessoa tem permissão para a morte natural. Entre adoecer e morrer há muito o que fazer pelo bem de quem vive esse processo tão delicado e sagrado.

De que forma os cursos de Medicina enxergam os pacientes terminais? E no que esse tratamento implica?
A pessoa que tem uma doença que ameaça sua vida e tem capacidade de decisão sobre o que considera digno e pertinente ao seu tratamento deve ser ouvida. Talvez precise ter paciência com a medicina brasileira de modo geral, pois ainda não chegou ao conhecimento de todos os profissionais da saúde que tratam de pessoas com câncer o que há de mais moderno no tratamento destas doenças tão devastadoras: cuidados paliativos.

Os cuidados paliativos atuam nas necessidades do paciente e de sua família, comprometendo-se a avaliar e tratar os sintomas físicos de desconforto, como dor, fadiga, cansaço, falta de ar e outros que possam causar sofrimento e piora da qualidade de vida. Ao mesmo tempo em que trata os sintomas da dimensão física, orienta-se no sentido de avaliar e cuidar das necessidades emocionais, sociais, familiares e espirituais do paciente e de sua família, respeitando seus valores e crenças.

Uma conversa compassiva e bem clara sobre o diagnóstico bem avaliado, o conhecimento técnico qualificado da história natural da doença, o cuidado atento e ativo, acolhedor e respeitoso e uma relação plena de compaixão e respeito com o paciente e seus familiares é o caminho para a manutenção da dignidade da vida até seu último instante.

Não existe nenhuma necessidade de escolher entre cuidar e tratar uma doença. A saúde buscada pela medicina que descarta o cuidado ao sofrimento se concentra exclusivamente na doença. Mesmo quando busca a cura, tem o foco apenas nos exames e nas evidências de presença de doença. Fecha os olhos ao sofrimento da pessoa que tem a doença, mas não é a doença. Diferente do tratamento curativo, que enfoca o processo patológico, o cuidado paliativo é voltado para a experiência do paciente e esforça-se para minimizar a carga deste sofrimento e trabalha incansável para maximizar a qualidade de vida do paciente e de sua família. Um aspecto distintivo do cuidado paliativo consiste em aceitar claramente que a morte faz parte da vida e não a considerar uma inimiga. O inimigo é o sofrimento e não a vida.

Os tratamentos curativos e paliativos são complementares entre si, pois com um melhor controle de sintomas o paciente e sua família podem passar pelo tempo de tratamentos curativos de maneira mais efetiva, mesmo que estes tratamentos sejam mais agressivos. O que ocorre em geral é que, à medida que a doença apresenta progressão, percebe-se uma maior necessidade dos cuidados paliativos; sendo possível que, em algum momento da evolução da doença de base, a prioridade de cuidados visa o conforto e qualidade de vida exclusivamente.

Por que, apesar de ser conhecida como “a única certeza da vida”, a morte ainda é tão difícil de digerir? De que forma poderíamos lidar melhor com ela? Espiritualidade e autoconhecimento podem ser caminhos?
Eu penso que esse medo de falar da morte traz um segredo feio de ter medo de uma vida mais real, mais verdadeira. Se você tem medo da morte, deveria buscar conversas sobre o medo. A morte na verdade é parte da vida, e acelera a compreensão do que realmente é importante de ser vivido dentro dela. A morte pode te trazer a consciência da vida que vale a pena viver. Não existe escolha entre morrer e não morrer, mas existe escolha entre viver bem e não viver, entre saber o que fazer com seu tempo ou desperdiça-lo. Você pode não falar da finitude, mas haverá mesmo assim o fim, pode não falar da morte, mas vai morrer como todos, como qualquer pessoa. Isso é belíssimo saber — não há privilégios, não há punições: é humano morrer. Talvez o medo exista porque as pessoas têm dificuldade para falar sobre os limites, sobre perdas, sobre o sofrimento que não será jamais desejado, mas vai acontecer. Se você ama alguém, precisa saber perder essa pessoa e exatamente por isso vai precisar amar muito! Se você ama a vida, precisa viver sabendo que ela termina e exatamente por isso é tão necessário viver!

A espiritualidade é importante, a religião só será valiosa se orientar as pessoas num caminho de amorosidade e verdade. Existe um contexto muito imprudente de pensar que Deus resolve tudo, já que se estabelece uma relação com um Deus que muda de ideia dependendo de quanto convincente você é. Na dinâmica da espiritualidade o processo de entrega para a seu caminho, com todas as experiências que existem neste caminho como parte da sua história, é algo que precisa ser vivido muito antes de envelhecer ou de morrer. Tem a história que você construiu, que você viveu, que aprendeu e ensinou. A experiência de ter sorte ou azar ou bem feitoria divina é algo que tira a sua capacidade de lidar com a sua própria vida, como se “terceirizasse” a possibilidade de mudança ao destino ou a Deus. Você vai viver o seu fim de acordo com que você viveu. Muitas vezes a visão religiosa de castigo e punição agrega ainda mais sofrimento a maneira de como se deve pensar a finitude. A espiritualidade é entrega, é confiança de que tudo que você está vivendo é seu caminho. A experiência de fim de vida deve ser a experiência de quem completa sua história, quem finaliza algo muito bonito.

Tomando como base a sua experiência ao lado de pacientes terminais, geralmente a possibilidade da morte assusta mais a pessoa doente ou os familiares e amigos ligados a ela?
O luto das pessoas que perdem ou estão para perder um ente querido está relacionado como ela viveu com esta pessoa durante a vida. O amor é o que rege este momento. Vivemos intensamente com esta pessoa? Pudemos falar tudo que gostaríamos para ela?  Para cuidar de alguém que enfrenta seus tempos finais é preciso busca saber muito mais do que a doença que a pessoa tem. Você adoece pelo corpo, mas não é somente a dimensão física que sofre. Somos seres complexos, com dimensão emocional, familiar, social e espiritual — que te acompanham no adoecimento físico, facilitando ou dificultando a expressão de seu sofrimento como um ser humano integral. Saber de sua história é saber do contorno de seu caminho de enfrentamento das condições limitantes de vida. Algumas vezes podemos nos surpreender, pois tem pessoas que sofreram por bobagens a vida toda, mas na hora em que tinham realmente algo grave, estabilizam, superam, transcendem o sofrimento. Outras não…

Se eu te fizer a pergunta “como gostaria de morrer?”, a maioria das pessoas vai responder que quer morrer dormindo, de repente, sem sofrimento. Talvez seja porque preferem viver uma vida adormecida, desconectada? Não sei, é apenas uma reflexão. Mas essa só é uma morte abençoada quando se teve uma vida abençoada. Isso não é o que acontece com a maioria, as pessoas não demonstram afeto, não dizem que amam, não pedem perdão, não vivem experiências de felicidade com a frequência que deviam permitir-se viver. Então, quando você tem um diagnóstico de uma doença que ameaça a sua vida ou ameaça a vida de alguém muito importante na sua vida, você cai na realidade e também pode cair em si. Não imagina a quantidade de pessoas que me dizem que a melhor coisa que lhes aconteceu foi o câncer, às vezes sentem-se até culpadas de falar isso, mas a verdade é que a doença se torna uma oportunidade de uma vida com sentido. Por que é que precisou disso? Porque foi o único jeito de permitir-se pensar na morte. Quando recebeu o resultado da biópsia percebeu que era mortal. Já era mortal antes do resultado da biópsia, mas foi naquele momento que tomou consciência disso. As pessoas que vivem um processo de finitude têm a chance de viver uma vida que consideram ter mais significado e que desejariam ter vivido a vida inteira, mas aí o tempo é pequeno…dias, semanas, meses são apertados para acolher a vida inteira que não foi vivida. Mas é bonito demais ver que encontram sabedoria pra fazer as melhores escolhas e aproveitam muito seja qualquer tempo que tenham, desde que seu sofrimento seja cuidado.

Qual o principal ensinamento que a finitude da vida pode nos dar?
Gostaria que as pessoas não tivessem mais tanto medo de falar da morte. Na nossa sociedade, esse tema é um tabu, como se fosse um segredo feio. Esse medo contribui para que as pessoas não tenham uma vida mais real, mais verdadeira. Se você tem medo da morte, deveria buscar entender e conversar sobre esse medo, para conseguir encarar a morte de outra forma. A morte, na verdade, é parte da vida, e acelera a compreensão do que realmente é importante ser vivido.  A importância de conversar sobre a morte é tomar consciência do tempo de vida. Preparar-se para a morte é viver, com seus riscos e com suas consequências.

Pensar sobre a morte é importante para salvar sua vida como biografia. É uma escolha viver uma vida que faça sentido ou não. Uma vida para ser lembrada como a de alguém que fez diferença no mundo, ou apenas como a vida de mais uma pessoa que simplesmente passou por aqui. Conhecer mais sobre a morte, sem tratá-la como um segredo feio, ajuda a despertar a consciência sobre a vida que vale a pena viver. Não existe escolha entre morrer e não morrer, mas existe escolha entre viver bem e não viver bem, entre saber o que fazer com seu tempo ou desperdiçá-lo. Você pode não falar da finitude, mas ainda assim haverá o fim. Pode não falar da morte, mas vai morrer, como qualquer pessoa. Isso é belíssimo. Não há privilégios, não há punições: morrer é humano.

Talvez o medo exista porque as pessoas têm dificuldade para falar sobre limites, sobre perdas, sobre sofrimento, que jamais será desejado, mas vai acontecer. Se você ama alguém, precisa saber perder essa pessoa, e exatamente por isso é preciso amá-la muito. Se você ama a vida, precisa viver sabendo que ela termina, e exatamente por isso é tão necessário honrar a vida, vive-la intensamente.

Nossa cultura é frágil demais em consciência da finitude humana. Falta maturidade, integridade, realidade. O tempo acaba, mas a maioria das pessoas não percebe que quando olha o relógio repetidas vezes esperando o fim do dia, na verdade está torcendo para que sua morte se aproxime mais rápido. Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo fim de semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos torcendo para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. Dizemos que depois do trabalho vamos viver, mas esquecemos que a opção “vida” não é um botão “on/off” que a gente liga e desliga conforme o clima ou o prazer de viver. Com ou sem prazer, estamos vivos 100% do tempo. Vida é coisa constante. Vida acontece todo dia e poucas vezes as pessoas parecem se dar conta disso.

Quanto mais consciente da morte, mais o ser humano se torna humano mesmo. E só sendo humano de verdade dá para escolher como passar seu tempo por aqui: viver até que a morte chegue ou ir morrendo enquanto acha que está vivo.

Programe-se

  • O quê: encontro de Enfermagem da Unimed Nordeste – RS, com a médica Dra. Ana Claudia Quintana Arantes e com a enfermeira Dra. Emiliane Nogueira de Souza.
  • Quando: neste sábado (29), das 8h às 12h.
  • Onde: canais da Unimed Nordeste no YouTube e Facebook.
  • Quanto: participação gratuita.

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