Estadão: O que dizem os mortos

Publicado no Blog Inconsciente Coletivo, do Estadão. Texto de Morris Kachani.

 

Talvez fosse o caso de você, como eu, abrir mão pelo menos por um tempinho das manchetes, das redes sociais, e das próprias preocupações mundanas.

Sempre é tempo para se falar sobre a morte. Um tema que para muita gente, é tabu. Uma pena que seja assim, pois há muito o que aprender com ela, inclusive para se viver melhor.

“Quando você toma consciência que seu tempo acaba, você passa a ter lucidez sobre suas escolhas; você escolhe pelo que você sofre, não desperdiça sua energia com coisas secundárias”.

A médica Ana Claudia Quintana Arantes é uma grande referência no assunto. Especializada em cuidados paliativos para doentes terminais, ela já lidou com centenas, para não dizer milhares, de situações limítrofes.

“O processo da morte, o momento da morte, é muito parecido com o trabalho de parto”.

“Fé não é você acreditar que vai dar tudo certo. Fé é você acreditar que o que está acontecendo é o certo, a sua jornada”.

“A gente devia encaixar um período de aposentadoria na vida todos os dias”.

Ana Claudia, formada na USP, tem pós-graduação em psicologia e especialização em cuidados paliativos pela universidade Oxford. Atendeu inúmeros pacientes no HC, e no Hospital Albert Einstein, onde mantém um consultório.

Em toda sua trajetória, ela enfrentou dificuldades para fazer valer entre os colegas sua crença de que o paciente merece atenção mesmo quando não há mais chances de cura. Da mesma forma que se advoga pelo parto natural, Ana Claudia advoga pela morte natural.

Em 2012, ela deu uma palestra no TED que rapidamente viralizou, ultrapassando 1,8 milhão de visualizações. Mais recentemente, lançou ‘A morte é um dia que vale a pena viver’, pela editora Sextante, com mais de 20 mil exemplares vendidos. Um livro corajoso, e bonito.

“Quando você nasce você inspira, e a última coisa que faz na vida é expirar. O ar, na cultura oriental, é você devolver o sopro vital”.

“É triste? É triste. A morte é linda? A morte tem uma beleza que é um pouco uma beleza da arte. Você olha a Pietá, é uma coisa que comove de tão bonita, mas é triste. Então, é possível você ter uma morte com a intensidade da arte da Pietá”.

Como você acha que devemos abordar a morte?

Eu penso que a grande dificuldade que as pessoas têm em abordar esse tema diz respeito ao medo que elas têm da morte. Elas acreditam que falar sobre isso pode fazer com que algo de muito ruim aconteça. ‘Vira essa boca pra lá’, ‘bate na madeira’. ‘Vamos parar de falar sobre esse tema mórbido, temos que pensar positivo’.

Esse medo faz com que nos distanciemos do tema, só que a morte não está nem aí para o seu medo, ela vai acontecer na sua vida de uma forma ou de outra. O contexto de perdas é algo que a vida não nos poupa.

Muita gente acha que não devemos falar sobre morte com alguém que está muito doente, que temos que poupar a pessoa. Mas a vida não poupa essa pessoa das experiências que ela tem com a doença. Ela não é poupada de seu câncer, se for poupada de falar sobre ele.

O que na maioria das vezes acontece é a experiência de uma profunda solidão nas pessoas que estão nesse processo. Elas gostariam de falar a respeito, mas olhando em volta só encontram pessoas totalmente acovardadas diante do tema.

Em algum momento, as pessoas morrem. Quando você tem medo da morte, medo de falar sobre ela, o que você consegue evitar é sentido na sua vida; você evita a possibilidade de encontrar um tempo que valha a pena ser vivido. A consciência do tempo que resta traz pra gente a noção de prioridade.

No livro você escreve que a morte é uma ponte para a vida.

Porque, quando você toma consciência que seu tempo acaba, você passa a ter lucidez sobre suas escolhas; você escolhe pelo que você sofre, não desperdiça sua energia com coisas secundárias.

Dá pra ter uma morte feliz?

Dá. Na minha prática como médica paliativista, eu vejo que para a grande maioria das pessoas a morte é um dia que vale a pena viver. Porque todo o processo de cuidado, de atenção, de lucidez, de consciência que é construído ao longo do seu processo de adoecimento, faz com que você tenha uma finitude muito digna.

É triste? É triste. A morte é linda? A morte tem uma beleza que é um pouco uma beleza da arte. Você olha a Pietá, é uma coisa que comove de tão bonita, mas é triste. Então, é possível você ter uma morte com a intensidade da arte da Pietá, mas ela não deixa de ser triste, não quer dizer que depois a pessoa que ficou não vá viver o vazio do período de luto.

O processo pode até trazer felicidade, no sentido de realização. A realização de que tudo foi feito e a pessoa morreu e cumpriu sua missão. Ela morreu sem dor, sem falta de ar, com a família por perto, resolveu suas pendências, disse que amava, ouviu que foi amada, agradeceu, perdoou, pediu perdão e se despediu.

E por que as pessoas têm medo?

Tem gente que sofre porque vai ficar dependente, perder a autonomia. Eu brinco que, quando você fica mais velho, é muito cacique pra um índio só. Tem um monte de filhos falando “você tem que…”, o médico a mesma coisa, a sociedade também. E você tem que pensar: e eu? Eu quero o quê?

A pessoas têm medo do processo de sofrimento físico, que é inevitável, mas que dependendo da doença pode ser cuidado. Nesse caso a experiência do processo da finitude – se a pessoa não tiver uma doença que tire sua consciência –, vai ser vivido.

Muita gente fala que quer morrer dormindo. Será que é o melhor jeito?

Se na véspera você brigou com a pessoa que mais ama, não é um bom jeito de morrer. Morrer dormindo significa uma busca de inconsciência, que eu penso que é uma busca tosca.

Fale um pouco sobre o estado de terminalidade.

É uma condição clínica. Não está relacionada a tempo, pode levar anos, semanas ou dias. É quando a medicina não tem nada pra te oferecer, nada que possa controlar a evolução natural da sua doença.

Quando as pessoas chegam nesse estado de terminalidade, a maioria é consciente?

Depende de como ela viveu a própria vida. As pessoas que terceirizam as escolhas, nesse momento elas ficam perdidas. Elas também querem terceirizar a experiência da morte, mas não tem como, ninguém vai morrer no seu lugar.

Quando você vive uma vida inconsciente, o teu processo de finitude é um processo que te priva da liberdade de escolha, porque você nunca quis pensar sobre isso, nunca falou sobre isso.

As pessoas têm que conversar sobre a morte sem necessariamente estarem doentes. Até para terem suas vontades respeitadas, quando a doença chegar.

Se você é um doente terminal com consciência, o medo é do sofrimento ou é de ir embora mesmo? Ir embora dá medo?

O paciente que está em cuidados paliativos, acompanhado por mim, quando ele percebe que o tratamento que ele está recebendo alivia todos os desconfortos que ele tem, e os que não são aliviados são controlados ou entendidos, já não há mais o medo do sofrimento.

Há um certo cansaço no finzinho. Você começa a achar que deu, que está pronto. Mas isso não faz a morte chegar amanhã. Eu falo que é a hora que você faz o check out. Quando você está numa cidade lindíssima e seu vôo de volta é às 23h; o ideal é você fazer o check out logo após o café da manhã e ainda aproveitar um pouco antes de ir embora. A gente consegue fazer isso com pessoas em final de vida. Ela vai ver o filho mais uma vez, ela vai ficar com o cachorro mais uma vez. Ela tem que saber viver aquele momento como se fosse o último, mas sem a certeza de que será.

Mas a pessoa pode tem alguma insegurança…

É raro. Quando você tem uma dimensão espiritual pouco estruturada, no sentido de achar inconcebível ceder ao propósito divino. Se há a necessidade de um controle sobre essa dimensão espiritual, há sofrimento, porque aí a pessoa quer saber o que vai acontecer depois, e ela fica com medo disso.

Na minha opinião, fé é entrega. Fé não é você acreditar que vai dar tudo certo. Fé é você acreditar que o que está acontecendo é o certo, a sua jornada. E no sentido religioso do processo, você ter a certeza de que será amparado, haja o que houver, não há o que temer.

As religiões ajudam nesse sentido.

Se tiver esse olhar, sim. Se tiver o olhar de punição, como que castigado por não ter sido um bom filho pra Deus, ou ainda abandonado por ele – o que é mais dolorido ainda –, não.

Quais são as perguntas que você se faz a respeito da vida e da morte?

As perguntas que mais me inquietam são sobre o tempo. Como saber o que é importante pra ser vivido por uma pessoa? Quais as perguntas que eu preciso fazer que vão me levar a um espaço de uma resposta ampla?

Li um livro chamado Poder de uma pergunta aberta: o caminho do Buda para a liberdade, de Elizabeth Mattis Namgyel. Foi muito fascinante pra mim.

Eu não posso fazer as mesmas perguntas pra todo mundo. Eu tenho que te conhecer pra fazer a pergunta certa. E a pergunta certa é uma pergunta aberta que você nunca respondeu antes, porque o tempo final da sua vida é novo. Você pode acreditar que já teve duas mil vidas, mas nessa vida aqui você vai passar por sua finitude uma vez só. Você viverá sua dor com a experiência de consciência adquirida nessa vida.

Você já viu muita gente morrendo. Como é? É um instante?

Teve uma vez que cuidei de uma senhora que tinha sido parteira no interior da Bahia. Oitenta e tantos anos, câncer de pulmão. Ela ficou internada num quarto duplo e viu várias senhoras faleceram ao longo de uma semana. E aí, conversando com ela perguntei como estava sendo a experiência dela, se estava sendo muito difícil. Ela me disse: “Não, é muito tranquilo. Nós somos colegas”. Como assim? “Eu faço parto de menino, você faz parto de alma. É igualzinho”.

O processo da morte, o momento da morte, é muito parecido com o trabalho de parto. Na morte natural a pessoa respira devagar, depois profundo. Ela respira rápido, depois faz pausa. É uma respiração caótica. Então, você não consegue perceber nenhum padrão. Essas expressões e os movimentos respiratórios são muito parecidos com trabalho de parto. Eu gosto de dizer que você está dando à luz a sua vida. Isso extingue a necessidade de você acreditar em algo. Quando você dá seu último suspiro, você assinou embaixo sua biografia.

Tem um último suspiro?

Tem. A gente dá uma expirada. Quando você nasce você inspira, e a última coisa que faz na vida é expirar. A definição de vida é a diferença entre o minuto antes da morte e a morte.

O ar, na cultura oriental, é você devolver o sopro vital. Eles dizem que o que a gente tem de sagrado é o ar, que dá liga a todos os elementos. Quando você terminou sua missão, você tem que devolver, porque o ar não te pertence. É aí que você dá seu último suspiro.

Teve uma paciente que eu cuidei, que eu expliquei pra as filhas como ia ser esse processo, e falei sobre essa coisa do trabalho de parto. Quando eu fui na casa dela pra assinar o atestado de óbito, a filha me abraçou e me disse: “Eu vi a hora que a alma da minha mãe nasceu”. Você ter essa experiência é totalmente diferente de falar “eu vi a hora que minha mãe morreu”.

O que dizem os mortos?

Os mortos me dizem muito a respeito da vida. Os meus mortos não descansam, eles continuam me visitando e sorrindo pra mim, dizendo “que bom que você aprendeu”.

E antes de morrer?

Uma coisa que eu ouço com muita frequência é: “a melhor coisa que me aconteceu foi o câncer”.

Jura?

Juro. De pessoas que estão no paliativo. E elas não abrem mão da vida maravilhosa que têm por causa do câncer. Porque elas têm uma consciência de prazer e dignidade ao longo da vida que sem o câncer elas não tinham. Era gente tosca que não dava importância ao tempo, zumbis que desperdiçavam seu tempo reclamando de situações que não lhe diziam respeito. Porque as situações que lhe dizem respeito, elas pedem trabalho, e não reclamação.

Quem são os zumbis de hoje em dia?

Todo mundo que tenha ideia fixa por alguma coisa que remete a segurança. Porque não há nada que te dê segurança. A pessoa fixada no corpo, fixada na mente, na parte emocional, conforto material. Que deixa pra viver depois porque tem que, por exemplo, ganhar dinheiro agora. Então, não se realiza em outras dimensões, porque serão coisas que vão acontecer daqui a vinte anos, depois de ganhar o primeiro milhão, depois da aposentadoria. A gente devia encaixar um período de aposentadoria na vida todos os dias.

Como você vê a reforma da previdência e todo esse debate sobre aposentadoria?

As pessoas vivem mal por escolha, não vivem mal só por causa do Governo. Eu penso que as pessoas mais prejudicadas são as de baixa renda, que são a maioria.

A minha vida e a tua podem não mudar em nada com essa história. A gente vai deixar pra viajar uns anos depois, só isso. Essa é a irritabilidade das pessoas com a questão da aposentadoria? Porque elas têm a ilusão que é quando se aposentam que começam a viver. Como se a aposentadoria te permitisse autorização pra vida. E não é isso. Se você não viveu até os 75, esquece, você não vai viver depois. E antecipar sua aposentadoria pode antecipar sua frustração de não trabalhar mais.

Eu faço geriatria. O consultório está lotado de gente que adoeceu depois da aposentadoria. Era melhor que não tivesse aposentadoria pra essas pessoas, porque elas perderam o sentido da vida.

Então, estamos tendo uma discussão que parece pra mim como se fossem várias televisões ligadas em canais diferentes e todo mundo achando que é o mesmo programa.

Mas os prejudicados de fato são os trabalhadores rurais, as pessoas que não contribuíram, que trabalham em casa, a vida doméstica da mulher do lar, que agora sustenta seus netos com a aposentadoria. Essas pessoas vão ser gravemente prejudicadas. Mas pra classe média e alta, é uma discussão muito idiota.

Então você acha que não deveria haver o sonho de aposentar?

É um pesadelo. Porque você vai estar mais velho, vai adoecer mais. Você trabalhou sua vida inteira num trabalho tosco e muito sofrido e que te violentou a dignidade, pra você pegar depois a aposentadoria; que vai te custar super caro, porque você tem pouco tempo agora.

As pessoas querem se preparar pra aposentadoria, mas não se preparam pra ficar velhos, pra ter um corpo útil, uma qualidade de relacionamento com seus filhos boa, pra usufruir do tempo de velhice. Ninguém investe nisso.

Ah sim, mas você vai ter seu dinheirinho no final do mês pra pagar remédio, porque você vai estar muito doente.

As pessoas se arrependem muito no final da vida?

A pergunta mais sensível seria: você faria alguma coisa diferente? E a partir daí podemos estudar juntos um caminho de você realizar essa coisa diferente, que não diz respeito a voltar atrás, porque isso não é possível.

Você trazer a possibilidade da pessoa encontrar um caminho diferente para o tempo que resta, para ela é algo muito mais valioso do que fazê-la sofrer pelos sofrimentos e escolhas que fez. Porque ninguém comete erros de propósito.

Em geral, as pessoas partem felizes com suas vidas?

Não é todo mundo que consegue isso. Tem gente que fez tanto estrago que é difícil você pensar que seja capaz de reconfigurar toda experiência de vida. Mas ela consegue pelo menos reconfigurar o tempo final. Como um último capítulo de novela, onde tudo se consolida, ameniza, relativiza. Se você não disse ‘eu te amo’ para o seu filho a vida inteira, e você falar isso na hora de ir embora, salva sua história. A última impressão é a que fica.

Pra quem está vivo, qual é a inspiração?

A gente pode estar morto semana que vem. O que você vai fazer com sua semana? Se você quer morrer dormindo, não termine seu dia em guerra. Se cada pessoa que diz que quer morrer dormindo honrasse suas últimas horas de consciência antes de dormir, nossa, que mundo melhor que a gente ia ter!

Quem morre melhor?

Morre melhor quem fez o que podia com o tempo que tinha. E geralmente quem faz isso é mais pobre.

Eu brinco, pra que você precisa ter sete travesseiros da NASA, se não consegue dormir bem?

Porque, quando você é rico de grana ou intelectualmente, você se perde nas decisões, desperdiça seu tempo com escolhas erradas. “Minha vocação era ser bailarina e eu fui ser bancária”, coisas assim.

Agora, a parteira que eu cuidei, ela não tinha outra opção. Ela aprendeu com a mãe, que aprendeu com a vó. Ela não ficava pensando em outras possibilidades. Ela fez o melhor que podia com o que sabia. E morreu em paz.

Você comenta no livro que as famílias adoecem junto.

Sim. A nossa vida é baseada nas relações que nós temos. Todas as relações adoecem junto conosco. Adocemos de uma maneira complexa, não é só fisicamente, mas emocionalmente, socialmente.

E sobre as pessoas parecerem oráculos.

Se você quiser um conselho bem dado, vá pedir a alguém que está morrendo, porque este alguém consegue ver além, consegue te dizer o que vale a pena, o que é importante.

Qual o valor de você pensar sobre isso sem estar doente? Porque você se torna um oráculo da própria vida.

Escolha bem as suas brigas, suas lutas, porque é seu tempo que vai ser gasto nelas. E nunca se esqueça que nas guerras todos saem perdendo, mesmo os vitoriosos.

Você acha que a gente vive mal as nossas vidas?

Não sei se posso generalizar, mas estamos num momento em que a tendência é viver mal. A prática geral é uma vida sem valor. Uma vida que você considera desnecessária, e aí você começa a diminuir a qualidade e importância da vida dos demais. Porque se sua vida não tem valor, a dos outros também não tem. Existe uma competição pra ver quem sobrevive, não é nem quem ganha mais.

Essa crise política e de valores que estamos vivendo, ela entra no ambulatório também?

Eu acho que o processo da doença muitas vezes liberta as pessoas dessa percepção. Porque elas saem da experiência do macro, do ódio compartilhado, e elas focam. É como você lida com o seu fim. Não adianta morrer com raiva do Bolsonaro ou do Lula. Você resumir o valor do seu tempo no ódio por terceiros que não fazem nada pelo seu afeto…

A gente está desperdiçando energia nessas guerras?

Talvez um pouco. As pessoas pensam em sobreviver ao trânsito, a essa etapa política, em como seus tataranetos vão sobreviver na Terra…

Venho de uma geração que usufruía dos benefícios da terra, agora 30% dos amigos dos meus filhos são veganos. Eles têm uma noção de realidade que minha geração não teve. Eu falo que deveríamos pedir desculpas aos jovens, e não criticá-los.

O mundo que a gente está entregando não é legal.

É péssimo. Pelo menos uma parte dos nossos filhos tem uma consciência de continuidade. Talvez o mundo melhore quando se extinguirem pelo menos umas três gerações…

E esse medo que todo mundo sente de morrer sozinho?

Essa questão de morrer sozinho não é tão frequente quanto se imagina. Diz respeito muito mais a suas expectativas familiares, suas relações, construção de laços, do que exatamente a experiência de morrer sozinho. Porque, de fato, é muito raro uma pessoa morrer só mesmo, ela vai ter alguma pessoa por perto.

Na Casa do Cuidar (organização social criada por Ana Claudia e Cristiane Prade, que atua na prática e no ensino de Cuidados Paliativos, e oferece assistência integral gratuita para pacientes), criamos um jogo de cartas que chama ‘Cartas das escolhas sagradas’. São 36 cartas de escolhas para o último tempo de vida. Uma das cartas é ‘Não morrer sozinho’. Já fiz essa dinâmica com centenas de pessoas, e somente duas ou três pessoas escolheram essa carta como a mais importante.

Quais as mais escolhidas?

‘Estar em paz com Deus’. ‘Ter a minha família preparada pra minha morte’. ‘Não sentir dor’. ‘Não sentir falta de ar’.

O Brasil ainda engatinha nesse assunto todo?

A gente deu um upgrade lindo em novembro, porque foram assinadas as políticas públicas de acesso ao cuidado paliativo. Agora o processo é treinar os profissionais pra poder oferecer isso a 15 milhões de brasileiros no SUS.

Que notícia boa. No livro você fala muito sobre os médicos que abandonam os pacientes.

Minha maior luta não são os pacientes e as famílias, não tenho dificuldade em conversar com eles, eu tenho dificuldade com as equipes.

Tem um momento que você fala que se a gente não cuida da dor, ela se apodera da nossa vida inteira.

Exatamente. Eu tive essa experiência quando fraturei meu pé, nunca pensei que fosse suportar tanta dor.

No jogo das cartas eu escolheria ‘não sentir dor’. Sem problemas morrer sozinha, dane-se a família, estou em paz com Deus. Não quero é morrer com dor!

O que são os cuidados paliativos?

Eles dizem respeito a uma abordagem que contempla o cuidado de um ser humano que está diante de uma doença que ameaça a vida dele em todas as dimensões do sofrimento: físico, emocional, social, familiar e espiritual. A gente atua no alívio e na prevenção do sofrimento previsto, prevalecendo a qualidade de vida e a dignidade.

O que pensa sobre acelerar a morte, sobre manter um doente na UTI, mesmo sabendo que não tem cura?

Quando você tem uma doença grave, que ameaça sua vida, e está numa fase incurável em que a medicina não tem nada que garanta o prolongamento da sua vida com qualidade, você pode dizer ‘não’ para qualquer tratamento, para o sofrimento que o tratamento produz. É um direito, você pode escolher não tratar. A experiência que eu tenho é que as pessoas vivem melhor quando dizem ‘não’.

Agora, sobre manter na UTI: você está substituindo uma função, não está regenerando. Não faz sentido. A pessoa vai morrer entubada.

E a sedação?

A sedação é a redução do nível de consciência para tratamento de um sintoma que não responde de outra forma. É completamente diferente, ela faz parte dos cuidados paliativos. É um dos procedimentos mais complexos.

Mas a sedação cega – aplicada sem avisar o paciente ou a família –, é uma má prática médica.

A expectativa de vida está aumentando cada vez mais. Como você enxerga isso?

A expectativa de vida aumenta na medida em que você tem condições de sobrevida. E essas condições passam pela base da pirâmide: comida, água, esgoto, medicação, vacina. A gente não aumentou a quantidade de anos na nossa vida em cima do último tratamento do câncer.  As pessoas se iludem achando que é isso, mas não é. É a base. E a gente está perdendo a base. Isso significa que talvez a expectativa de vida caia em muitos lugares.

E essa condição onde você tem mais tempo de vida também te leva a uma situação onde você será mais tempo dependente. Porque essa ilusão da morte súbita é pra 10% da população. Se prepare para dar trabalho.

Você é religiosa?

Eu sou espiritual. Minha fé não cabe em nenhuma religião.

Já fez uma projeção sobre sua própria morte?

Não. Pra mim a coisa mais valiosa seria a autonomia. Minha capacidade de lucidez.

E quando a família não quer contar ao doente qual sua situação?

Essas condutas idiotas são permitidas porque a vida foi conduzida de uma maneira idiota. Ninguém conversou sobre morte a vida inteira, aí tem o velhinho de 95 anos com a velhinha de 90 e ninguém fala sobre isso. Não querem falar a palavra câncer, não querem falar demência.

Hoje, atendi uma senhora que está há quatro anos em progressão de perda cognitiva. Agora ela entendeu que realmente precisa de ajuda. Ela falou assim: “Não é Alzheimer, né?”. Eu falei: e se for? “Se for eu tenho muito medo”. O medo não te salva de nada. Faz quatro anos que você tem medo do remédio. Eu penso que deveria ter medo da doença.

Essa coisa de poupar o paciente muitas vezes tira dele a consciência da responsabilidade que ele tem.

Como o luto deve ser vivido?

O luto é vivido na mesma dimensão da qualidade da relação que foi vivida. Se teve muito amor, dói muito e resolve mais rápido. Se foi um relacionamento tenso, o luto será tenso.

O luto não é algo que você abre mão. Você vive. É o tempo que começa no dia da morte. Se você o vive com entrega, se o nega, finge que não existe ou mesmo exagera nele, depende da qualidade da relação e da sua personalidade.

Você está vendo outras mortes por aí?

As mortes sociais. As pessoas invisíveis. As pessoas se tornaram invisíveis aos olhos de quem poderia vê-las. Elas passam a viver num espaço morto, onde cresce o ódio, o sofrimento, a discriminação, a dor, o abandono. É como eu vejo.

5 respostas

  1. Combina com tudo que penso e vivo!
    Parabéns!
    Quero lhe conhecer! Sou médica, Psiquiatra, 45 anos de formada, vivo e trabalho em Recife.

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