DN Life: “Não imagina a quantidade de pessoas que me dizem que a melhor coisa que lhes aconteceu foi o cancro”

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Diz que a melhor metáfora que tem para a morte é a «moça do Waze» e que, se queremos aproveitar a vida, temos que respeitar a morte. Rosto sereno, discurso pausado, tom de voz baixo. A médica brasileira Ana Cláudia Quintana Arantes, especialista em cuidados paliativos, geriatria e psicologia, veio a Portugal lançar o seu livro A Morte É Um Dia Que Vale a Pena Viver [Oficina do Livro/Leya] e dar palestras um pouco por todo o país. É sobre a morte que fala, mas é sobre a vida, a nossa vida, que nos põe a pensar.

Entrevista de Catarina Pires | Fotografia de Sara Matos/Global Imagens

A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver é o título do seu livro. Se é assim, não deveria ser dada às pessoas a liberdade de escolher como morrem?
A pergunta é interessante, mas, de acordo com a visão que tenho do processo da morte, isso é inviável.

Inviável como?
Inviável porque, quando você decide como morrer, está a controlar a sua morte, uma situação para a qual, em regra, não há controlo. Ora, quando constrói o controlo sobre a sua morte, abre mão da maior experiência humana possível. E esse controlo baseia-se no que você sabe, que pode ser muito pouco diante do que a morte tem para te ensinar. Por isso, não faz sentido para mim.

Mas os cuidados paliativos também são uma forma de controlo – da dor, do sofrimento – e fazem todo o sentido.
Sim, o cuidado paliativo faz o controlo do sofrimento, não da doença. Não é cuidar do cancro ou da demência, é dar assistência e cuidados para todas as dimensões do sofrimento humano, quando a pessoa está diante de uma doença que ameaça a sua vida: sofrimento físico, emocional, familiar, social e espiritual. O ser humano não é só a dimensão biológica, por isso, os cuidados paliativos são realizados por uma equipa multidisciplinar.

PENSO QUE NÃO PODEMOS FALAR DE MORTE CONTROLADA ENQUANTO NÃO CONSEGUIRMOS FALAR DE MORTE NATURAL.

A legalização da eutanásia foi recentemente discutida em Portugal e rejeitada. Parte da discussão centrou-se nos cuidados paliativos. São incompatíveis?
Penso que não podemos falar de morte controlada enquanto não conseguirmos falar de morte natural. O cuidado paliativo engatinhando no mundo e nós falando de eutanásia? Pode ser que daqui a algumas décadas tenhamos essa maturidade, saibamos lidar com o sofrimento, existam cuidados paliativos para 100 por cento das pessoas que sofrem, e assim consigamos falar de maneira honesta, verdadeira, compassiva, a respeito de todos os medos. Aí cabe falar sobre o abreviamento da vida. Até esse dia, isso é corrupção do tempo, é roubar tempo à vida.

Porquê?
Quando falo de morte natural e natureza do cuidado, quero dizer que estou a dar oportunidade a que a morte seja o grande evento de entrega da vida. Passamos a vida tentando controlar para chegar ao final e abrir mão do controlo. A primeira coisa que acontece na nossa vida é receber o ar e a última será entregá-lo, no último suspiro. Nesse momento, você devolve o ar que recebeu no primeiro momento da sua vida e esse ato de entrega é um ato humano de plenitude. Já quando você controla – desenha a sua morte, escolhe o dia, a hora, etc., faz todo um script –, é como se fosse um bolo maravilhoso, mas feito de isopor [plástico], não tem sabor. É como se pusesse um ponto final no meio da frase.

Sim, mas abdicar do controlo ou assumi-lo não deve ser uma escolha?
Claro. Eu respeito quem faz. Não posso julgar o peso de um fardo que não carrego. Se você me disser que quer morrer porque viver para você é insuportável, eu respeito, não tem como não respeitar, mas não faço. E não condeno os médicos que o façam, sendo possível, se acreditam que é o melhor. Mas os grandes erros da nossa vida são quase sempre cometidos em nome de uma boa intenção.

SE NÃO ESTIVER CÁ PARA RESOLVÊ-LOS, A MAIORIA DOS PROBLEMAS QUE CONSIDERA MUITO RELEVANTES DEIXAM DE TER IMPORTÂNCIA. A CONSCIÊNCIA DA MORTE NÃO AMEDRONTA, TORNA A VIDA MAIS LEVE.

O que tem a morte para nos ensinar?
Penso que, se tivéssemos uma relação melhor com a nossa morte, saberíamos fazer escolhas mais sensatas, mais lúcidas, e até os erros seriam menos sofridos. Quando temos presente a consciência de que a vida vai acabar, não a adiamos, vivemo-la. Sabe aquelas pessoas que ficam torcendo para acabar o dia, para quem o melhor vem sempre depois, é na semana que vem que vai ser feliz, é no mês que vem, é nas férias, é na reforma? Há alguma coisa errada nas escolhas que essas pessoas fizeram. E a vida não tem um botão de ligar, desligar, pôr em stand by. Aceitar e encarar a morte é o primeiro passo para ter coragem de viver uma vida que vale a pena ser vivida; para construir a felicidade; para saber o que fazer com o seu tempo e com que intensidade viver as relações; para ter a capacidade de olhar para o seu caminho e dizer: é isso que tenho para viver, então, vou viver da melhor forma possível.

O ser humano vive entre o medo da morte e a sensação de imortalidade, o que acaba por ser um paradoxo. Como se gere isso?
Há muita gente que fala no medo da morte e eu respondo sempre que deveria experimentar trabalhar o respeito por ela. Se você a respeitar, ela vai ajudá-la a viver melhor. Pense numa lista de cinco grandes problemas que tem hoje, cinco coisas que lhe tiram o sono. Agora pense «semana que vem, estou morta» e olhe de novo para a lista. Se sobrar um problema, é muito. Se não estiver cá para resolvê-los, a maioria dos problemas que considera muito relevantes deixam de ter importância. A consciência da morte não amedronta, torna a vida mais leve.

Ajuda a relativizar.
Exato. Uma metáfora que uso muito é a moça do Waze [app para indicar caminhos]. Ela é a minha morte, porque posso mudar de caminho quantas vezes eu quiser, que ela não fica brava comigo e recalcula o itinerário. Não diz que nunca mais vai fazer caminho para mim porque eu não obedeço, não faz isso, só recalcula, e aí chegarei tranquilamente ao meu destino. A moça do Waze é a melhor metáfora que tenho para a minha morte, porque ela me orienta, me ajuda a estabelecer prioridades e a ser lúcida nas escolhas.

EU TENHO UM SLIDE QUE APRESENTO NAS MINHAS AULAS QUE DIZ ASSIM: DEFINIÇÃO DE VIDA – CONDIÇÃO SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEL, QUE LEVA PROGRESSIVAMENTE A INCAPACIDADES E EM 100 % DOS CASOS LEVA À MORTE.

O que tem aprendido com a experiência de trabalhar com pessoas que estão a morrer?
Tenho aprendido que, com a consciência da morte, você abre mão de ser quem você não é e é tão libertador isso. As pessoas tornam-se capazes de ser elas próprias, de verdade. Seja por duas semanas, dois meses, o tempo que for. Tenho o grande privilégio de conhecer pessoas de verdade e a a experiência da ligação que estabeleço com elas é muito rica. Estou na primeira fila, assistindo a vidas intensas acontecendo.

E como é lidar com o sofrimento todo que, independentemente do que acaba de dizer, é inevitável perante a perspetiva do fim, quer para o doente, quer para aqueles que o amam. O que faz para se proteger?
Não luto contra. O sofrimento atravessa-me e vai embora. O medo, a tristeza, o pesar, todos esses sentimentos vêm e vão. Vivo, experimento e deixo ir. Nenhum sentimento vem para ficar. Quando aceitei isso, tudo se tornou mais fácil. Nenhum sentimento é para sempre. Para sempre e nunca mais não existem. São coisa de adolescente. Perceber isso é muito libertador. Se tenho vontade de chorar, choro, se tenho medo, tenho medo, se tenho raiva, tenho raiva, mas os sentimentos não me dominam. Como se consegue isso? Com muita meditação, muito autoconhecimento, muita autocompaixão. Isso é bom, até para as relações entre as pessoas.

Uma pessoa com doença terminal tem mais tempo para se despedir, encarar a própria morte e lidar com ela?
Se fizer a pergunta «como gostaria de morrer?», a maioria das pessoas vai responder que quer morrer a dormir, de repente, sem sofrimento. Mas essa só é uma morte abençoada quando se teve uma vida abençoada. Isso não é o que acontece com a maioria das pessoas, as pessoas não demonstram afeto, não dizem que amam, não pedem perdão, não vivem experiências de felicidade com a frequência que deviam permitir-se viver. Então, quando você tem um diagnóstico de uma doença que ameaça a sua vida, cai a ficha. Não imagina a quantidade de pessoas que me dizem que a melhor coisa que lhes aconteceu foi o cancro, às vezes sentem-se até culpadas de falar isso, mas a verdade é que a doença torna-se uma oportunidade de uma vida com sentido. Porque é que precisou disso? Porque foi o único jeito de permitir-se pensar na morte. Quando recebeu o resultado da biópsia percebeu que era mortal. Já era mortal antes do resultado da biópsia, mas foi naquele momento que tomou consciência disso. As pessoas que vivem um processo de finitude têm a chance de viver uma vida que consideram ter mais significado e que desejariam ter vivido a vida inteira, mas aí só têm quatro meses ou um ano.

ABRIMOS MÃO DE UM CAFÉ COM UMA GRANDE AMIGA PORQUE SÓ TEMOS CINCO MINUTOS E ENTÃO É MELHOR DEIXAR PARA QUANDO A GENTE PUDER SAIR PARA JANTAR, MAS ESSE DIA NÃO CHEGA NUNCA… PORTANTO, SE TEM CINCO MINUTOS, APROVEITA.

Arrependem-se mais do que fizeram ou do que não fizeram?
Muita gente não só lamenta o que não fez, como o que gostaria de ter feito diferente. Os grandes arrependimentos não dizem respeito a conquistas mas a experiências. Quando você não se permitiu concretizar um sonho e percebe que já não tem tempo de o fazer: ter um filho, não falhar os momentos importantes da vida dos filhos… Todos os dias, abrimos mão de experiências que fazem sentido para a nossa vida, por causa do trabalho, pela «falta de tempo». Abrimos mão de um café com uma grande amiga porque só temos cinco minutos e então é melhor deixar para quando a gente puder sair para jantar, mas esse dia não chega nunca… Portanto, se tem cinco minutos, aproveita.

Talvez não se deva esperar por um diagnóstico de doença terminal para começar a viver de forma plena. É essa a ideia central do seu livro?
Eu tenho um slide que apresento nas minhas aulas que diz assim: definição de vida – condição sexualmente transmissível, que leva progressivamente a incapacidades e em 100 por cento dos casos leva à morte. Ou seja, você tem esse diagnóstico desde que nasce. Se está viva, vai morrer. Se tiver esta consciência antes de ficar doente, é tão incrível, porque vai perceber que a vida não é assim tão complicada e que nenhum dos piores dias da sua vida deixou de virar ontem. Não dura mais do que 24 horas. Às vezes, a missão é a sobrevivência, se ficou desempregado, se está com dificuldade em encontrar emprego, se acabou de se separar, se o seu filho foi para longe. É sofrido? É. Mas passa? Passa. Faz parte da sua história, não é a sua história.

O PROCESSO DE LUTO É FUNDAMENTAL. NA DOR DO LUTO TEM A CURA PORQUE VOCÊ REFAZ O VÍNCULO DE UMA MANEIRA SIMBÓLICA, É COMO SE A PESSOA RESSUSCITASSE DENTRO DE VOCÊ

Temos dificuldade em lidar com a morte e também com o luto, sobretudo o dos outros. Porquê?
Porque vivemos muitas vezes num registo de superficialidade que não suporta a dor, própria ou do outro. E vem com «vamos melhorar, vamos reagir, você perdeu seu marido, mas é jovem, pode casar de novo, você perdeu o seu filho, mas tem outro e ele precisa de você, você perdeu o seu pai, mas tem que cuidar da sua mãe», tem sempre um mas, que te distrai daquilo que você está vivendo. O processo de luto é fundamental. A dor do luto tem a cura porque você refaz o vínculo de uma maneira simbólica, é como se a pessoa ressuscitasse dentro de você e isso só vive quem viveu, não quem adiou, não quem fingiu que nada aconteceu. Às vezes parece que as pessoas estão se afogando na piscina baixinha das crianças, quando a vida é aprender a nadar com os tubarões.

Ana Cláudia Arantes estará em Portugal até ao dia 31 de janeiro e irá realizar um ciclo de palestras (de entrada livre e gratuita) em várias cidades – Braga, Porto, Castelo Branco, Lisboa, Ponta Delgada e Faro. Organizadas pelas principais associações nacionais na área dos cuidados paliativos, as palestras destinam-se a profissionais de saúde, estudantes de medicina, cuidadores informais e à população em geral e terão lugar nas seguintes datas e locais:

23 de janeiro, 18h, Lisboa, Hospital da Luz (lançamento do livro)
25 de janeiro, 18h30, Ponta Delgada, Hospital do Divino Espírito Santo
29 de janeiro, 18h, Faro, Centro Hospitalar Universitário
30 de janeiro, 18h30, Lisboa, Livraria Buchholz

Fonte: DN Life

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